terça-feira, maio 12, 2009


Revivo de cada vez que vejo, ao longe, encoberta pela opacidade dum vidro, a luz sofrível dum carro. Dilato ao som de paredes, soalhos e tetos em ruína, nas passagens ora brandas ora aceleradas das nuvens soturnas no céu. Que hei-de dizer de mim quando em palavras mudas desconheço a minha própria essência. Ai, os gritos ensandecidos de homens e mulheres embriagados que reclamam com o deturpado, com o sujeito ser rosto que vive entre mim e entre nós, reclamam deles próprios em embrulhos de culpas distribuídos ao vento… O vento, que bate levemente no meu rosto enquanto o cigarro diminui e os carros ora abrandam ora aceleram soturnos na frieza das estradas. Uma razão não é razão só porque existem olhos que descodificam as almas de quem não vê. A razão é muito mais. A razão são as andorinhas atarefadas, tomadas pela responsabilidade de legar à espécie mais algum tempo, as gaivotas que rapinam ora aqui ora ali, soturnas, no lixo de todos nós, de aqueles que conspurcam as almas e de aqueles que conspurcam o corpo. E um só dia em que o sol brilha soturno por de entre as nuvens que anunciam chuva bastaria para que o amor que há em mim fosse diferente, fosse obtuso, confuso ou quiçá mais sisudo. Ó homens e mulheres embriagadas que da chuva da noite fazem confidente, que confesso à chuva da noite que sou mais vosso confidente do que vocês de vós mesmos, desde o primeiro minuto, desde o primeiro bramido… sofrido, esquecido na luz fosca dos carros por de entre os vidros, da viagem entre o opaco e o translúcido, que havemos de voltar um dia para recuperar as palavras de desagrado que de nós mesmo se fizeram em figura irreal. Havemos de… voar, talvez.