Os sons daquela estranha terra vêem para mim de maneira gradual, sem me dar qualquer hipótese de fuga, tempo para pensar na melhor forma de os evitar, e começam a subir de tom, a tornarem-se mais complexos, até que se fundem numa vastíssima mistura de faíscas cósmicas sonoros capazes de destruir até o cérebro mais pujante. Ascensões súbitas, quedas repentinas, longos caminhos na vertical, à velocidade do som, alternados com travagens bruscas e explosões de novas direcções, não estranhamente horizontais. Só me resta tempo para dizer, segue-me e acompanha-me na dor.Eis um novo som a emergir do mais cavado do meu cosmos. Ele cresce lentamente e capta a minha atenção, vive alimentando-se da minha essência, e que robustez de barulhos confusos tão intricadamente tricotados que, não raras vezes, chega a roçar uma ode sonora, uma ópera, é isso, mesmo não possuindo características que o insiram neste género musical, a gracilidade dos seus sons chegam a roçar o mais profundo e complexo que se conhece da ópera. E vozes cósmicas, tecnologicamente insondadas entrepõe-se entre a harmonia celeste desta composição para guiá-la numa direcção inteiramente diferente, no sentido da estrela mais contígua ao sol e posso segui-la, à mesma velocidade, com a mesma elegância, com o mesmo sentido de ausentar-me das imediações do planeta. Mas há vozes bárbaras que acompanham o som, imprimindo-lhe qualquer coisa de obsoleto, que modificam-lhe a fórmula e o fazem divagar num friso cronológico da história do meu planeta. E surge mais um sample hipnótico para martirizar os meus sentidos sem piedade, o meu corpo ressente-se, torce-se, esmaga e expande, tudo num fundo cénico que cria uma ponte entre eras longínquas e eras inatacáveis, e os actores surgem, vêm vestidos de veludos, couros e linhos, e trazem os olhos cobertos em materiais sintéticos, assim como sintéticos sãos os seus adereços. Que peça é esta, quem foi o maldito criador desta encenação que me confunde, que aumenta a entropia em meu redor, quem é o condenado, eu não quero comprimir, diminuir, implodir na confusão. Quero servir-me do som e expandir-me, crescer, voar daqui para fora, cruzar o espaço e o tempo a uma velocidade ilimitada, por favor, ajudem-me e não me deixem ficar para trás, deitado à constrição, à pequenez, a introspecção e à loucura. Levem-me convosco e deixe-me tomar a dianteira do som que segue em direcção à próxima estrela, à estrela que se segue ao sol, ao nosso último destino.
Pedras, estão a cair pedras do céu, e a que velocidades viajam, meu Deus, conseguem viajar mais depressa do que o meu corpo, que já ia embalado na velocidade supersónica da melodia rebuscada e confusa que me servia de propulsão. Eu queria seguir no sentido inverso ao das pedras que caem, mas a sua velocidade prendeu-me, encantou-me e deixou-me no meu coração a vontade de viajar com elas, de comprimir novamente e deixar-me amarrar pelos braços gravitacionais que ladeiam a terra. Indecisão neste momento é que não. Não quero ficar sem saber o que quero realmente, porque a minha primeira opção é aquela que tem que prevalecer, quero partir para a estrela mais próxima e voar a uma velocidade próxima da velocidade da luz e ouvir, ao longe, a bela melodia pluritemporal que me impulsionou para os ares.
É noite, a barreira azul do céu dissipou-se, esqueci as dores, os medos e todas as coisas que me faziam sofrer, a partir de agora é para a frente, seguindo o som do futuro e as melodias do passado em direcção ao desconhecido. A escuridão do cosmos murmura votos de boa viagem, não é tempo de hesitar, a velocidade aumenta de forma louca e é tarde para pensar, o espaço parou, tudo parou, e só a música mantém a sua presença inalterada, e vejam a terra, azul e magnifica, que coragem temos em deixá-la para trás, mas não é de nós que ela precisa… não. Precisa de quem a ame e de quem a estime e nós já não somos capazes de o fazer, passamos dessa fase motivados pelo nosso egoísmo e desejo de expansão. Vamos, jamais voltaremos, ou talvez um dia possamos voltar, quando reaprendermos a amá-la na medida em que ela merece, vamos, sem recordações ou lamentações, a estrela mais próxima é o nosso destino e nada o pode mudar.

Estamos juntos desde sempre. Lembro-me da primeira vez em que o nosso corpo irradiou os primeiros raios de luz no firmamento do indivisível. Que momento mágico, duas estrelas que explodiram para o brilho ao mesmo tempo, sem precisarem de planeamento ou programação, porque a casualidade encarrega-se sempre de criar coincidências tremendamente intrigantes, factos que não podem ser explicados senão pelo acaso, pelo destino e pelas explicações metafísicas que proliferam e edificam o mundo dos homens. 



Bum, bum, bum, o coração continua a bater, os passos longínquos ecoam no soalho envernizado da sala da minha imaginação e as unhas no vidro deslizam ao ritmo de um arrepio, as flores negras abrem rapidamente e morrem com a mesma celeridade, o futuro transforma-se subitamente em passado como a folha de um livro que retrocede com a brisa do vento matutino, os reflexos da água embebem-se de vida, saem das ondas e executam danças ritualistas, as flores soletram sílabas incompreensíveis e as suas vozes enfraquecem, o mundo flutua num estranho limbo inextricável e o nevoeiro levanta, está-se a abrir um novo enigma defronte da minha presença física e só o consigo percepcionar pelo 7º sentido. E uma criança chora à melancolia das árvores que decoram os lugares sombrios do meu imaginário, um pássaro executa o seu harmonioso canto até que as suas forças vitais se libertem e a ária primaveril se converta em requiem, as pedras acusam-me de mentir, querem o meu sangue, querem vestir-se dos meus fluidos, e as vedações humedecidas pelo orvalho indicam-me a entrada para um labirinto de espinhos e d´almas errantes.
Sítios vazios que ardem pelo fogo sem razão que desconhecidos não conseguem descrever, memórias esvaziadas e embusteiras que se ocultam dentro de espelhos fictícios nascidos das lágrimas brandas que pernoitam nas minhas íris, fantasmas deambulantes e objectos inclassificáveis que se maneiam por movimentos incógnitos e percorrem o céu azul sem nuvens a velocidades impressionantes, são receios profundos e sem fundamento que atormentam o mais imenso e interno da minha consciência, temores fantasiosos cujo poder me deixa absolutamente aterrorizado… Fico sempre na dúvida, na sensação de que as coisas que povoam os meus imaginários têm qualquer coisa de concreto, deparo-me com elas em diversas ocasiões, em momentos em que não tenho qualquer dúvida da situação da minha consciência, quando, na maior das certezas, reconheço que estou acordado, a viver de sensações exteriores que preenchem a minha mente e lhe conferem a sua forma, a sua experiência e o seu conhecimento de senso comum, mas a sua raridade, a sua quase inexistência, a volatilidade da sua fundamentação fazem-me regredir, rompem-se questões, conduzem-me à loucura. São momentos tão estranhamente fantasiosos e tão concretamente reais que fico na perplexidade sobre a sua verdadeira feição. O que de real tem um objecto em forma de pássaro amparado pelas correntes de ar quente que se elevam das camadas mais decadentes da atmosfera, girando ao sabor de uma força desconhecida e anormalmente intrigante? O que de real têm as luzes foscas que me acompanham nos cigarros, que vagueiam pelo céu prenhe de estrelas e que repousam, não raras vezes, ao meu lado? E as memórias que me atacam cobardemente durante o sono sobre experiências que não me recordo ter vivido, páginas da vida que repousam recalcadas na biblioteca da memória, quais as razões das suas presenças indesejadas e porquê de eu não as associar a factos da minha vida normal, aos momentos em que dou e recebo partes de mim e partes dos outros, à plena consciência. E depois assombram-me medos surreais, agonias pelo desconhecimento estúpido e pela falta de organização que grassa no meu cérebro. Não sei se me devo entregar aos caos crescente que envolve a minha vida ou se devo simplesmente deixá-los, silenciosos e perturbadores, no cofre das mentiras, naquele celebre sepulcro lacrado que guarda piamente os medos, os receios, a dúvida no desconhecimento, as maldições e a estupidez que preenchem os seres humanos fracos que habitam neste planeta. Eu não quero ser um ser humano fraco, um ser humano dominado por dogmas, profecias, fantasias e mentiras. Simplesmente queria que esses conteúdos negativos saltassem da minha tampa e fosse chatear outra alma, porque eu já possuo a minha quota-parte de situações caóticas a congeminar no meu cérebro. Mais? Mais para quê? Para que se manifeste o novelo de comportamentos e pensamentos esquizofrénicos que tenho tentado ocultar, apagar, remover da minha vida?
Está a começar repetidamente. Não quero, não mereço, não fui adequado para suportar ilusões contingentes, para deslindar os enigmas que se avultam do mais profundo da minha psique, o dom de inventar significados ténues para interrogações absurdas em caleidoscópio não consta da meu léxico de talentos, e sou confrontado com uma miríade delas quando, no silêncio do meu quarto, na agrura da minha divagação, o sono é a derradeira etapa. Esforço-me por acautelar estes momentos em que só existe um eu, uma fronteira escura e a cadência interligada de vários sons em desalinho, quando o sofrimento é avivado pela melancolia dum requiem destinado a alguém que viverá num futuro inatacável, alguém que padecerá de males do coração numa dimensão inversamente proporcional a esta em que nos movemos, e onde os acontecimentos escolhem atalhos que os cessam em epílogos próprios, sem conotação ou relação com os que se desfecham perante mim, que exploro, que me fazem subir ao infinito e explodir em ondas sonoras tocadas pela harpa de Deus, mas a melodia que decora a sua morte é-me tão facilmente audível, que chego a considerar que a dimensão longínquo e inversamente proporcional àquela que me tem é, na realidade, a mesma realidade que é inversamente oposta à realidade inversamente oposta, e ambas as realidades são a realidade no sentido cósmico da palavra. Os desfechos são diferentes, os intervenientes são outros, o enredo era exclusivo, e o protagonista é o mesmo, o solitário pensador que receia as questões obliquas que se acasalam perpendicularmente com a sua necessidade de um breve repouso. Alto, algo fez revivescer de vigor o coração que batia a um ritmo quase derradeiro. São novos sons, breves trechos conhecidos fundidos numa base sonora de outra dimensão, só pode ser algo do outro universo, porque o som é longínquo, distorcido, de tal maneira desigual que não o classificaria como tal, como som, muito menos como melodia, se os seus ornamentos não fossem as melodias intemporais que povoam os milénios de história humana, eu afirmaria que musical aquilo não seria. Estão ligados, emaranhados, bailando sobre as vibrações micro cósmicas que edificam o universo. É como se entrasse num carro e tomasse a via mais rápida para o outro lado do universo, para os antípodas da terra, um lugar onde pessoas existiram e legaram ao futuro conhecimentos de diferentes ordens, e que por acaso um deles é o saber da música. Que estranha semelhança com o meu lar, um legado de conhecimento deixado pelas gerações passadas no intuito de que as gerações futuras encontrem soluções para os problemas e contrariedades que os afectaram e para os quais não conseguiram encontrar soluções… Oh, mas vejo, também, que não estão a dar o melhor encaminhamento a essa panóplia quase infindável de conhecimentos produzida por aquelas gentes ancestrais. Estão, por sua vez, a troçar dela e a fazer tudo de uma maneira inteiramente diferente, meu Deus, obtêm prazer por contrariar a sabedoria ancestral, de tal forma que é quase uma coisa tangível o desprezo que sentem pelo passado. Olho para trás de mim, por cima do ombro, e vejo os nossos homens a fazerem exactamente a mesma coisa, com rigorosamente o mesmo prazer, como se um passado fosse um mero divertimento, um conhecimento que apenas serve para recreio, para alegrar a soirées dos intelectuais. Infelizes deles e infelizes de nós, que nos decidimos por atribuir importância e valorização a conjecturas que brotaram dum futuro completamente desconhecido, impossível de alcançar e cujo conhecimento que armazenou é nenhum e jamais trará soluções para o passado. Não quero ver mais, francamente, não consigo ver mais. As ondas sonoras estão a guiar-me num sentido totalmente diferente, longe da gente dos antípodas da terra, do outro extremo da galáxia, longe das gentes que existem ao virar do meu pescoço, e sinto que essa direcção é aquela que sempre quis, desde o inicio, que nada mais é do que o conforto quente e doentio da minha cama… Os dedos estão a encontrar barreiras à sua fluência. Eu quero dizer mas eles preferem em guardar o segredo. Perdoem-me

