terça-feira, julho 15, 2008

os Eus (catarse II)

Voltei de além consciência, pronto para te enfrentar novamente, vazio de receios, repleto de vontade, na posse dos dons de raciocínio que me distinguem de ti, meu eu da contradição. Julgas que podes simplesmente atacar-me com as imperfeições que me compõe, dizer-me realidades que tanto me ferem, enumerá-los de forma violenta e crua e esperar que eu aceite as coisas assim, passivamente, sem contradizer nem refutar, sem abrir a porta ás idiossincrasias do meu coração, o sentimento, a única coisa que tenho que me torna diferente de ti. Enganas-te redondamente. Eu sou mais, ultrapasso o defeito, eu sou muito mais, tanto mais que não consegues chegar tão alto, eu sou Eu, Deus, o Olimpo feito em corpo humano, as virtudes e os defeitos divinos, eu sou a Luz, a omnipresença, a omnisciência, a totalidade, eu posso poder ou querer, sem contestação, sem impedimento, eu vivo de viver nas vossas mentes, de as constranger e as remeter ao desconhecimento, eu sou maior do que a vida. Na verdade, tu nem chegas a ser por completo. És uma imagem desfocada de mim, um vulto castigado que anseia por ocupar o meu lugar à direita do Pai, um ser cuja inveja obriga e leva a tudo, sem ponderação nem compreensão, um mal que existe para dificultar o trilhar da minha vontade à ascese máxima, ao Paraíso dos homens, um sopro melancólico que flutua ao sabor da loucura sem jamais livrar-se da sua incapacidade, tomando destinos e colhendo saudades, és fogo morto que revive das fraquezas e não me deixo tentar por ti. Imagina, foi a mim que Deus escolheu para carregar a tocha, a luz primordial, o primeiro raio que brotou das reacções atómicas primevas que aconteceram na juventude do universo, foi-me confiado esse desígnio, sem direito a opção, que prontamente aceitei e tão arduamente tenho cumprido. Tu querias apagar a chama, apagar tudo o que reluz no Universo, deitar às trevas toda a coisa que é, sem piedade nem arrependimento, querias apagar as galáxias apagando as estrelas, querias apagar as estrelas que alimentam e fecundam o órgão reprodutor dos planetas, querias acabar com esta vida, com aquela vida, indiferentemente, querias por termo ao elo que liga a simples molécula composta à mais pura e incontrolável inteligência.
Ouço-te a arranhar as cordas do violino, queres levar-me para o sono eterno, não, não vais conseguir, eu jamais deixar-me-ei encantar novamente, nem que para isso seja necessário combater-te com a veemente energia vital que experimento percorrer-me o corpo de uma ponta à outra. É belo, reconheço, é belo por demais, é tão belo que me prende lentamente a uma espiral de turvas sensações. Oh, tu sabe que me apraz este sentimento inesperadamente hipnótico, sabes que não declino um belo deambular de cordas dedilhadas com arte, que nem mesmo o meu amor pelo universo pode quebrar a grandiosidade da ilusão que crias, e eu queria combater-te. Onde estás, Deus, neste momento em que a tua intervenção é necessária? Para onde foste? Porque me largaste? Estás disposto a legar-me à minha sorte, sem me favoreceres com quaisquer espécies de ajuda, mesmo sabendo que enfrento aquele que te odeia acima de qualquer coisa, aquele que escarnece de ti, que te acusa de impotência para com os desígnios do universo, do teu maior inimigo, de mim.
É impossível, não estou à majestade dele, ele é imoderadamente poderoso para mim, o seu dedilhar de cordas, a melodia bela, eu quero confiar nela, porque ela diz que me ama, mas eu desconheço o seu significado de amor, … Deus, nascem-me flores aos pés sem cessar. Mais e não me conseguirei libertar, sair desta sepultura de flores tão perfeitamente erguida, e talvez é mesmo isso, estou a ser sepultado para repousar na eternidade banhado em flores. É a minha medida, é a minha urna. É o som, o som melódico que me veicula espirais está a mudar, a ganhar pesar, não há ninguém que queira ou possa interferir. Ninguém pode. Como poderia alguém envolver-se numa magia e encantamento que ocorreu ao mais profundo terreno escorregadio da minha consciência. O meu interior está em alvoroço e não há ajudas, ninguém quer saber do bastardo de Deus que não tem forças para sequer encarar a tentação e o demónio.
Que fraca imagem que tens de ti próprio, bastardo dos Deuses. Eu sei que o teu maior desejo, maior mesmo do que o amor que sentes pelas poucas pessoas que conseguiram deslindar o teu coração, é alcançares a divindade e ascenderes à imortalidade do céu. E és tão prepotente em achar que todos que vivem, na terra, na via láctea, em Andrómeda, todos que existem no universo tomaram o teu partido e seguir-te-ão. Meu bastardo dos Deuses, que, por demasiada imperfeição, foste feito homem, de carne e osso, e pior, de corpo e alma. Estás destinado a suportar as sevícias que são impostas aos humanos, a confortá-los nos momentos de dor, a alegrares-te quando os vês alegres, mesmo que no mais profundo íntimo não consigas rir, a compartilham os seus feitos idiotas, a cair de felicidade quando algum alcança algo ou ultrapassa uma barreira, e eu sei que não acreditas na felicidade, nunca acreditas-te, por achares que a felicidade é um segundo apenas na hora da vida dos homens. O restante é tristeza, sofrimento, solidão, angustia, sentimentos dolorosos e negros. Querias inverter o sentido do relógio do sentimento, mudar a história da humanidade. Bastardo que choras a prantos pelos actos dos homens, que vives com um coração de homem, que amas a humanidade, jamais serás Deus enquanto não te libertares do coração humano, do amor e da paixão, da empatia e da comiseração. Não és Deus… és homem.

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