sexta-feira, julho 25, 2008

Quarto Vazio

Hoje vieste sem avisar, bateste à porta e entraste sem pedir permissão. Mais um abuso. Não fui capaz de te negar a entrada, porque, confesso, sem ti toda a minha subsistência perde a razão, fico limitado a experiências que abomino experimentar e corro de modo desesperado para a falésia que divide a vida da morte. Não te quero e não consigo viver sem ti, é um estranho antagonismo para o qual não encontro resoluções, soluções viáveis que tornassem mais fácil esta ambiguidade mórbida que comanda a nossa existência enquanto eternos inimigos. A chuva cai no coração destes malditos sem piedade, contamina-os de ácidos nocivos e químicos letais ao sistema biológico humano, e tudo permanece como era, ainda o sol reinava lá no manto de moléculas que sustentam esta vida. Sim, estava longe demais, tão longe que a sua luz, seguindo à velocidade normal, demoraria 8.4 minutos a atingir-me. Deus sabe o quanto quis e me esforcei por diminuir essa distância, o quanto queria ser eu próprio o emissor da luz, ter uma vida longa na companhia dos meus astros, presas inexoráveis da minha atracção gravitacional, e com eles bailar segundo danças cósmicas que não contemplam a compreensão humana, Deus sabe como quero irradiar-me de ti.
Eu já ganhei um abrigo, criei-o com toda a arte e sabedoria que acumulei de pessoas que padeceram da mesma inconstância do que eu, mas tu consegues sempre superá-los e entras silenciosamente, com um pesar profundo nos olhos que me transmite medo, receio, dúvida, só que não posso negar-te e simplesmente ignorar-te, sabendo que és uma das partes mais prementes da minha personalidade, não posso evitar-te quando sei que estás aqui, mais intrínseco ou mais extrínseco, estás aqui, no céu generoso que conquistei aos anjos e nos campos sangrentos que ganhei nas derrotas sobre as bestas.
Dá-me nomes, enche-me de lamentos, de pesares, trata-me da maneira mais rude que conseguires, faz-me lembrar que és de mim e que jamais serás de outro alguém, envolve-me no som dos sinos da igreja que vociferam o meu requiem, e, por favor, morre comigo. Estou sem forças, não há apoios resistentes dentro de mim onde me possa apoiar, ainda por cima cortaram-me as unhas e crucificaram-me sobre uma cruz de noções estranhas sobre as quais levantei a minha conduta. Mas não existe conduta, a existir, existe uma profunda apatia e um humor terrível que não mudo e não quero mudar, porque eu sou apático, alienado, não quero gente, não quero barulho, não quero sorrisos, não quero sonhos belos, nem quero neve a cair-me sobre os pés. Estou soterrado em noções estranhas que ganharam vida de uma cruz de madeira que me ampara uma das paredes da cela. Cicatrizes surgem-me nas mãos e dá-me vontade de chamar a viúva que congeminou a minha queda e a morte que nos alimentou a todos, foi por elas que perdi o controlo do meu eu e me deixei subjugar pelo meu id, a elas devo a minha queda e a ressonância dos meus pecados. Sou recalcado, recalcado, frustrado, atormentado por lembranças esquecidas de lendas que viviam nos meus tempos de infância, na adolescência, na idade adulta, na velhice e na morte. Serei eternamente recalcado, no passado ou no futuro, nunca no presente, porque assumo que fui recalcado e que serei recalcado e que eu próprio me recalco neste momento para padecer de mais recalcamentos. Tenho uma câmara aberta para mim, num chão com falsos e aberturas, não sei que fazer dela, embora ouça estranhos lamurios que se elevam do seu interior, dizem “Guiar-te-emos à corrupção dos anjos”, “Amarás a corrupção dos anjos como jamais amastes as coisas da terra”. São factos de sítios secretos que não conheço, nem quero ouvir falar, mas que se apresentam e se oferecem para matar-me a pele e os pecados, para eliminar para sempre a minha tristeza, querem que eu disponibilize a minha moral e a minha ética, sonham em ver-me esvaziado de pilares que guiem condutas aceitáveis para que a minha degeneração seja completa, incontestável, inexorável, bárbara e final.
Os meus olhos optam por se esconder, tal é a confusão entre tempos verbais e tempo dos homens que me vai na alma. Estão cansados de devaneios tristes e infrutíferos, querem abdicar de mim, e certamente não voltarei a ver as coisas do mundo dos homens nem as coisas do mundo dos anjos. A minha alma será purificada, mas os meus olhos estão condenados à eternidade da escuridão, não há nada que o meu interior possa fazer para alterar as modificações que ocorrem ao nível do exterior do meu corpo, embora seja dele a responsabilidade de tal destruição. Vento, vento, vento artificial que me consolas a face, vento das máquinas humanas que tens para me dizer? Esse sopro diz tão pouco e de forma tão complexa que os meus sentidos de homem começam a perder em qualidade para as tuas vocalizações, vou para baixo do reino dos homens, é isso que pretendes dizer e que eu, com muito esforço, não consigo compreender. As minhas pernas rangem de inércia, as articulações dão estalidos estranhos que indicam pouco movimento, e eu crente na agitação do meu dia a dia, imbecilidade, se eu nem sequer me movi um milímetro e assisto à reposição adiantada da minha vida sem sequer abrir os olhos. É demasiado complicado, está-me a brilhar dentro do coração e eu tenho fé na sua luz, mas as trevas avançam a velocidades próximas da velocidade da luz e rapidamente cairei na escuridão, é um sacrifício, dizem-me vozes, quem são, ninguém, sempre ninguém, vozes que não pertencem a ninguém.

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