terça-feira, julho 08, 2008

Anjo Louco II parte

Bum, bum, bum, o coração continua a bater, os passos longínquos ecoam no soalho envernizado da sala da minha imaginação e as unhas no vidro deslizam ao ritmo de um arrepio, as flores negras abrem rapidamente e morrem com a mesma celeridade, o futuro transforma-se subitamente em passado como a folha de um livro que retrocede com a brisa do vento matutino, os reflexos da água embebem-se de vida, saem das ondas e executam danças ritualistas, as flores soletram sílabas incompreensíveis e as suas vozes enfraquecem, o mundo flutua num estranho limbo inextricável e o nevoeiro levanta, está-se a abrir um novo enigma defronte da minha presença física e só o consigo percepcionar pelo 7º sentido. E uma criança chora à melancolia das árvores que decoram os lugares sombrios do meu imaginário, um pássaro executa o seu harmonioso canto até que as suas forças vitais se libertem e a ária primaveril se converta em requiem, as pedras acusam-me de mentir, querem o meu sangue, querem vestir-se dos meus fluidos, e as vedações humedecidas pelo orvalho indicam-me a entrada para um labirinto de espinhos e d´almas errantes.
Estarei a beneficiar de algum privilégio cósmico ao qual não estou a atribuir o devido valor? É no sentido da perdição eterna que devo seguir, abandonar o meu papel de humano e converter-me em figura duma lenda cruel? Eu não me importaria se as palavras que circulam pelo meu cérebro ousassem tomar-se de intenção e se soltassem para que o mundo as escutasse, mas elas estão impossibilitadas de fugir do cárcere da minha mente, e são barradas no meu sistema nervoso central, que as obriga a tomar o sentido contrário, esbarrando brutalmente contra desatino que é meu e implodindo de paixão. Eu almejava o Olimpo das palavras, a oferenda divina que faculta a eloquência máxima, quase celestial, que é dom dos deuses antigos, daria tudo por uma hora da minha existência de desafogos carregados de dor e profunda violência, vindos directamente do sarjeta impura que cega a minha percepção do mundo e das coisas, ai, se daria! As palavras, as ideias, meu Deus, os sentimentos mais puros que quero conspurcar recusam-se a sair de dentro de mim, a encontrar a via das palavras e a fundirem-se com o ulo do vento. Porquê, se o mundo cá fora precisa tanto de sentimentos como a vida precisa de água? Por que é que não desistem de me atormentar, que sou atormentado por natureza, e me alagam de culpas por ter feito coisas que jamais ousei pensar? De que é que elas precisam, de quê? De um cárcere para sofrer ou de um idiota para culpar?
Não posso conhecer a minha própria vontade, porque nem sei sequer se tenho vontade, força de querer, desejo de mudar. A mudança obriga a tanto que não me sinto preparado para enfrentar desafios e adversidades, portanto, eu não tenho mesmo força de vontade, sou um reles cobarde que sofre simplesmente porque se recusa a enfrentar a sua própria condição e a mudança, que, nestes termos, é a coisas mais simples de se alcançar nesta vida. Mas as vozes, as vozes amarram-me à sua magia e fazem de mim, do meu corpo e do meu espírito, a marioneta da sua própria querença, brincando umas vezes com a minha felicidade e ferindo-me profundamente com o desespero. É isso que sou, uma marioneta, um boneco destinado a ser aquilo que os outros pretendem que seja, sem contestar em minuto algum o meu papel e a minha postura apática e néscia. Neste rio, que é o meu mundo pequeno e cinzento, só um bordão dar-me-ia um pouco de alento, um pequeno auxilio, uma mãozinha, é de tudo o que preciso para quebrar as correntes e voltar a correr livremente pelas estradas alcatroadas e pelos paralelos interligados das ruas velhas da minha infância. Aquele piano continua a tocar para mim, e que bem que ele toca, sem músico nem maestro, sem vivalma que o leve, usando apenas da minha angústia para resplandecer. Até que do fundo da minha fé se abre uma luz, como uma espada em metal que rasga os fios de energia negra que amarraram os meus membros. O piano está a tocar, lá ao fundo, naquele local que ninguém consegue alcançar, e eu consigo vê-lo quando fecho os olhos e erro no interior do meu diminuto cosmos. As lamurias enchem-me de convicção e o desespero brota de cada poro da minha pela, e o anjo alado é logrado pelas setas da inveja dos homens que queriam ser anjos. Estou cheio de comiseração, mas não me consigo mexer, estou preso, circulo a grande velocidade no vácuo do meu cérebro e as figuras convertem-se em silhuetas disformes… Não pode ser, é o fumo, é o fumo que as abraça e embala para a morte, para o desaparecimento e ousa alguém dizer que este solo é divino, feito purificado pelo fluxo impuro meu sangue. Vou matar as minhas certezas com toda a certeza e chorar lágrimas de alegria por voltar a sorrir novamente… Há quanto tempo se esfumou a minha vontade de rir e se foi a alegria para a outra dimensão, para aquela onde repousa, calma e serena, a minha sanidade. Acreditas mesmo em ti, acreditas nas palavras que proferes sem vigor e sem quietude. Eu acredito, acredito que o meu horizonte longínquo é as estrelas que vejo e que me cegam para que as veja eternamente no interior que é de mim. Eu só quero as estrelas, tocá-las, beijá-las, amá-las e com elas arder para a eternidade, sem desordem nem arrependimento, ser uma estrela, queimar-me de combustível cósmico até que o combustível se torne em vazio e o meu corpo repouse adormecido no fundo longínquo e inalcançável do espaço sideral. É esta a minha vida, é nela que consigo e posso viver, preso pelos pés ao chão, sem a liberdade que preciso para voar, sem alegria nem compaixão, ao som do piano que ninguém conhece, só na minha certeza e no meu sofrimento. A minha vida é fria e solitário em quantidade suficientes, tenho todos os requisitos para ser a estrela morta que já não emite luz, que se alimenta dela e que continua a morrer lentamente à velocidade de um raio de luz. Perdoa-me, perdoa-me corpo por te odiar. Não tens culpa que a minha maior obsessão sejam as estrelas e que só no cosmos haja felicidade à minha medida. Oh corpo, és tu que recebes todas as chicotadas que a minha mente desfere, és tu que carregas o chumbo da minha existência descontente, és tu e os anjos pequenos que me tratam como um igual.
Tratam-me como igual, a mim, a um reles ser que professa o mal com todo o júbilo, um ente nefasto e podre que se recusa em reconhecer a divindade das figuras amadas pelos seus iguais. Assim não há lugar de anjo para mim… não, há penedos, chamas, vulcões no centro da terra e outros lugares agressivos e intoleráveis à vida, é esse o meu reino, o lugar do passado e do futuro irreconhecíveis que se fundem em um tempo que não é tempo, num tempo que é a eternidade, o sempre, igual, sem sentido crescente nem decrescente, uma ausência de sentido do tempo, um pasmo irritante. Os meus reinos não têm espaço nem tempo, nada, não há flores, não há verde, azul ou sol. O sol sou eu, as flores chamas coloridas que se exibem ao sabor do meu comando, o verde é cinza de sofrimento resultante de milénios de castigos de almas. Não pode ser, eu não sou assim, não sou, não há mal que viva aqui no meu coração. Eu tenho certeza que o mal não alcançou e ocupou o meu coração. Só há bem, um bem que ninguém reconhece ou se esforça por reconhecer, mas é um bem puro, inocente, ingénuo, doce e para sempre.
O ontem era uma miragem, o hoje é um estado de alma que me foi vetado, o amanhã, o que é o amanhã? Perdoa-me terra por ser a tua ovelha mais negra. Eu sei que querias que fosse diferente, que apenas fosse mais uma no teu rebanho… eu também assim o queria…

3 comentários:

sombra e luz disse...

olá saulus...;)
Você acaba com a minha vista já cansada!...;) Tantas letras, tantas letras... Adoro as imagens! Fico a olhar para elas... que me falam... de si, também...:)
Só queria que soubesse que estou aqui, mesmo quando não me vê... ou não me lê!... Sabe, querido, o verbal e o visual, o virtual e o real são mais ou menos, e coisa e tal...;)

Beijinhos saulus...
fico a olhá-lo, sorrindo...

Henrik disse...

Andas a escrever um livro não andas?

Henrik disse...

Depois quero autógrafo fachavor...