segunda-feira, julho 14, 2008

O deflagrar da purificação pelo sangue (catarse)



Aqui estou eu novamente, defronte do abismo que alumiará o meu corpo à entrada para o mundo dos espíritos. É noite, o silêncio que jaz na minha última morada é lancinante, penetrante, tão inextrincável que chego a experimentar um ligeiro sentimento de descompostura e entejo, dá a ideia de que a vaga de som é capaz de esmagar o cérebro até um nível totalmente inumano, algo fisicamente e espiritualmente inatingível. Mas eu não posso deixar a terra e partir para a minha imortalidade cósmica sem que o som da terra, aquele som tão belo que é delicadamente composto pela água, pelo vento, pelas árvores, pelos animais, pelos ruídos imundos que florescem do mundo impuro dos humanos, sim, até o barulho da humanidade, esse ruído imoral, frígido, impessoal e apático, essa sensação de mecanização dos ânimos e dos sentimentos que nasce da audição ausente dos barulhos humanos, até dele sinto falta, se despeçam de mim em lágrimas, como as mães e as namoradas que vêem o filhos e amantes que partem para a guerra. Vou cair, tenho a certeza que vou cair, é uma verdade inviolável, a minha queda para o abismo das almas, que leva directamente à passagem oculta que liga o mundo dos homens à ataraxia universal, estou perto dela, a apenas uma passo de iniciar a viagem, de deixar para trás a terra que tanto odiei, o vazio espiritual, a falta de motivos para existir, a confusão constante e dilacerante, os sacrifícios que temi e que, com brio, cumpri, não por mim, nem num minuto sequer foi por mim. Tudo o que suportei aqui na terra, em silêncio e aceitação, foi por vocês minhas estrelas luzidas que acenais para mim desde que os primeiros raios de luz se imiscuíram na minha retina e foram concomitantemente processados pelo meu cérebro, sim, por vocês, pelo brilho protector que, dia após dia, ia recebendo de vós a cada noite contemplativa e sonhadora.
E as pessoas que amei? As pessoas que deram o corpo e a alma pela minha satisfação, sem em momento algum exigirem qualquer coisa em troca, que se limitavam a dar o seu auxílio na resolução dos meus problemas, da minha angústia, da minha desmotivação de viver, merecerão que eu as abandone, que abandone a terra por capricho pessoal, sem que me retrate perante aquilo que me deram? Será justo deixa a terra, deitá-la ao olvido, voar pelo caminho inter dimensional que culmina no grandioso cosmos silencioso, viver como vivem as estrelas e em momento nenhum recordar aqueles que preferiram não viver em função da minha existência, de torna-la mais aprazível, daqueles que abdicaram de muito por tão pouco que eu exigia?
Quero voltar para trás, dizer-lhe de alma aberta que as amo, que sempre as amei, que o Paulo que conheceram era uma encenação, um protagonista sofredor na peça do próprio criador, que nada tinha de verdadeiro a não ser a imagem que ostentava, quando, silencioso, se aninhava sob os braços serpenteantes dum chorão, esse Paulo é um holograma real que criei para afastar de mim tudo aquilo que temi que me ferisse, física e espiritualmente. Eu abdiquei do conforto da amizade, da segurança da família, da oportunidade da sociedade para me tornar um monstro, sim, é isso que sou, um monstro monstruoso que vive em função de si próprio, que relega a vida de todos os entes queridos ao esquecimento por achar que todas elas são menores do que a sua, que não têm importância, que são inferiores a todos os níveis, que existem para me servirem.
Oh, e agora? Não as consigo deter, não, elas brotam rubras dos meus olhos, e eu quero vê-las sair, por favor, quero que saiam para que eu constate o mal que fiz ao mundo, ao meu mundo, o sofrimento que espalhei, as conflitos que ordenei, o caos que ficou na vida das pessoas depois da minha passagem. Choro lágrimas de sangue por todos, de peito aberto, vestido de arrependimento e incapaz de dar a outra face. Deus, o que foi que eu fiz a esta gente? Eles amavam-me, dar-me-iam as suas vidas se assim eu quisesse e eu aceitei, sem pensar que ali existiam pessoas tão reais e concretas quanto eu, tão humanas quanto eu, com problemas como eu, não, com problemas, o meu problema é achar que tenho inúmeros problemas que carecem de soluções, só que as soluções não podem ser achadas na terra, porque a terra é demasiado pequena para poder ostentar soluções para os meus problemas, que se aproximam vagamente do divino e que, não, não, os meus problemas são divinos, eu sou um Deus e quero o céu para mim, quero viver das estrelas, dos planetas, dos asteróides, dos quasares, dos blazares, dos buracos negros, das galáxias, dos pulsares, dos raios gama, dos infravermelhos, dos ultravioleta, das ondas rádio, da luz, quero o universo para mim, as partículas, os electrões, os neutrões, os positrões, os protões, os muões, os bosões, os mesões, os sigmas, as pequenas cordas vibratórias que amestram o universo, quero ser a Divindade, a energia inexplicável e ininteligível que dá forma ao universo e que comanda cada detalhe do seu funcionamento, desde o maior aglomerado de galáxias à pequenez inalcançável do mundo quântico. O problema sou eu.
Não vou jogar-me do abismo, não posso fazê-lo e deixa-los a todos para trás, seria de uma falta de reconhecimento e de uma ingratidão incalculáveis. Devo muito ao mundo, ao meu mundo, que é tão pequenino e ao mesmo tempo descomunalmente grandioso, onde há, … amor, amor por mim, amor que rejeito com escárnio melancólico estampado na cara, amor que brota das pessoas mais incríveis que existem na minha vida e que abdicariam das suas vidas em função da minha.
Egoísta, és um egoísta, e é tarde demais para te lembrares dessa gente que te manteve sempre num altar, com respeito e admiração, que contemplou os teus dilemas, que se ofereceu para melhorar a tua passagem pela terra e não percebes que os teus desejos de morte, de viver eternamente no reduto da estrelas, são problemas que não chegam a ser problemas, não, nada. São pura estupidez e limitação dos teus sentidos. Não sentiste que estavam todos aqui, sempre aqui, sem desarmar a momento algum, vincados ao chão como árvores vincadas ao solo pelas raízes, com a mesma força e com as mesmas raízes forte. És um bicho e não quero mais diálogo esta noite. Vou deixar-te afogar nesse sangue que te escorre dos olhos e que em breve tapará toda e qualquer via respiratória que ainda possuas, seu monstro, és uma monstruosidade, uma aberração… Pensa neles, pensa com mente de pensar, reflecte e procura o arrependimento. Depois diz-me a que conclusões chegaste e que medidas decidirás tomar. Deixo-te com pesar. Gabaste e não és nada…

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